Nos últimos meses cresceu o debate sobre a possibilidade de fornecimento de energia elétrica para imóveis em situação irregular perante os órgãos públicos. Consumidores vêm encontrando sérias dificuldades para ligar energia em imóveis de posse ou que apresentam alguma irregularidade perante a Prefeitura. Especificamente no Estado de Santa Catarina, a Celesc S.A., concessionária do serviço público no Estado, divulgou em sua página oficial[1] novas exigências que passaram a ser solicitadas, desde 28/09/2020, para pedidos de ligação nova:
“Por força da Lei Estadual nº 17.492/2018, que dentre outras premissas tratou dos critérios para efetuar ligações de energia elétrica em Santa Catarina, bem como a documentação necessária para a devida inserção dos pedidos no sistema, informamos que a partir do dia 28/09/2020, todas as ligações novas onde não exista ainda um número de UNIDADE CONSUMIDORA somente poderão ser atendidas mediante apresentação do documento de posse do imóvel.
Ressaltamos que nos locais apontados na ferramenta APP como área legalmente protegida, bem como, nos municípios que editaram leis municipais, continua a obrigatoriedade da apresentação do alvará de construção ou habite-se acrescido, do documento de posse do imóvel.
Relacionamos a seguir os principais documentos que caracterizam a posse do imóvel:
a) escritura, registro do imóvel ou certidão de inteiro teor do registro de imóvel (dentro do prazo de validade) contendo o endereço de forma clara e completa (logradouro, número predial e cidade);
b) contrato de compra e venda emitido por instituição bancária, contendo o endereço do imóvel de forma clara e completa (logradouro, número predial e cidade);
c) contrato particular de compra e venda, ou de promessa ou compromisso de compra e venda;
d) contrato de locação;
e) escritura, registro do imóvel ou certidão de inteiro teor de registro de imóvel (dentro do prazo de validade) com a doação formalizada no próprio documento;
f) documento de doação;
g) contrato de arrendamento/comodato;
h) formal de partilha.
As formalidades vêm amparadas na Lei Estadual nº 17.492/2018, que dispõe sobre a responsabilidade territorial urbana, o parcelamento do solo, e as novas modalidades urbanísticas, para fins urbanos e rurais, no Estado de Santa Catarina. Dentre outras providencias, trata “Das Autorizações de Ligações pelas Concessionárias Públicas”, estabelecendo o que segue:
Art. 17. Para os efeitos desta Lei, nos parcelamentos do solo, somente será concedida ou autorizada a implantação e operacionalização da infraestrutura necessária para o fornecimento de energia elétrica, abastecimento de água e gás, em zona urbana e rural, conforme o caso, após os seguintes procedimentos:
I – nos imóveis localizados em áreas urbanas, deve o proprietário ou interessado, devidamente autorizado pelo proprietário, apresentar o justo título, seja o imóvel pertencente a lote urbano, loteamento, condomínio horizontal e/ou vertical;
II – para qualquer outra modalidade de ocupação, a ligação somente poderá ser efetuada, mesmo que em caráter provisório, se estiver acompanhada da expedição do Alvará de Licença para a Construção, emitida pela autoridade pública municipal competente, e a ligação de energia, em caráter definitivo, somente após a expedição e apresentação do competente Alvará de Habite-se municipal;
Conforme ressalvado pela concessionária, as exigências são para pedidos de ligação nova, onde não exista ainda um número de UNIDADE CONSUMIDORA. Logo, descabida estas exigências para pedido de religação. Porém, há relatos de consumidores que vêm encontrando sérias dificuldades em conseguir acesso ao serviço de energia, mediante desproporcionais empecilhos criados pelas concessionárias, especialmente quando se está tratando de imóveis de posse.
É bem verdade que há necessidade de se exigir um mínimo de comprovação da legitimidade da posse, mediante apresentação de documentos idôneos, a fim de se coibir ligações a pessoas não autorizadas ou invasores. Por outro lado, não é incomum que se exija do consumidor autorização do proprietário registral. Muitas vezes o consumidor efetiva a aquisição do imóvel por contrato particular, onde não figura o proprietário registral como vendedor ou anuente. Aliás, tratando-se de imóveis de posse várias vezes não se tem o histórico completo da cadeia possessória. Para dificultar ainda mais o procedimento, os responsáveis pela análise dos pedidos não têm entendimento legal sobre o tema, e desvirtuam a legislação, criando barreiras ao acesso do serviço, o que deve ser coibido.
Logo, deve o consumidor ficar atento a estas exigências, reunindo o maior número de documentos possíveis para demonstrar a legitimidade de sua posse.
De igual modo, além da questão da análise da propriedade ou da posse, também começa a ser exigido em alguns municípios a comprovação da regularidade da construção mediante alvará de construção para ligação provisória e habite-se para ligação de energia definitiva.
Pois bem, cumpre distinguir se a área irregular onde se objetiva implantar a ligação nova se trata de situação consolidada ou não. Fica nítido que o interesse do Poder Público e as exigências feitas pelas concessionárias de fornecimento de energia visão controlar a urbanização da cidade, bem como evitar ocupação clandestinas, ilegais ou o surgimento de núcleos urbanos desordenados. Portanto, deve ser feita uma distinção entre aquele pedido de ligação para uma edificação recente – e não ocupação recente por cessão de posse – as margens das exigências públicas, daquela situação de fato consolidada por anos, onde, apesar da irregularidade da construção ou do loteamento, há robusta comprovação de que o local já era atendido pelo fornecimento de outros serviços públicos, não se podendo privar determinado consumidor, de forma isolada, ao acesso ao serviço essencial.
Esse é o entendimento do Tribuna Catarinense:
REEXAME NECESSÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE RELIGAÇÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA NEGADO PELA CONCESSIONÁRIA PÚBLICA. ARGUMENTO DE QUE O IMÓVEL ESTÁ LOCALIZADO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (APP). INSUBSISTÊNCIA. COMPROVAÇÃO DE QUE O IMÓVEL JÁ ERA ATENDIDO PELA CELESC E POSSUÍA LIGAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA DESDE O ANO DE 1990. ADEMAIS, RESIDÊNCIA LOCALIZADA EM ÁREA URBANIZADA E CONSOLIDADA, COM A PRESENÇA DOS DEMAIS SERVIÇOS ESSENCIAIS. SENTENÇA SOB REEXAME MANTIDA. REMESSA NECESSÁRIA DESPROVIDA. (TJSC, Remessa Necessária Cível n. 0306190-29.2017.8.24.0045, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Sérgio Roberto Baasch Luz, Segunda Câmara de Direito Público, j. 15-12-2020 – grifo nosso).
No mesmo norte cita-se julgado do TJSP:
APELAÇÃO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C TUTELA ANTECIPADA. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA EM LOTEAMENTO IRREGULAR. O Ministério Público do Estado de São Paulo sustenta a supremacia do interesse público sobre o particular, devendo ser respeitadas as normas que regem o direito urbanístico e ambiental. Impossibilidade. Serviço essencial. Situação irregular do imóvel que não impede o fornecimento de energia elétrica a terceiro de boa fé, que não deu causa à irregularidade do loteamento. Precedentes jurisprudenciais. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: 30005362620138260447 SP 3000536-26.2013.8.26.0447, Relator: Rosangela Telles, Data de Julgamento: 21/02/2017, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/02/2017).
Se por um lado não se pode chancelar ocupação clandestinas sem comprovação mínima da posse ou mesmo estimular construções a margem das exigências públicas, de outro lado há de se criar um marco temporal para a análise dos pedidos, não podendo construções consolidas serem enquadradas em um mesmo contexto daquelas recém-construídas.
Portanto, ao consumidor que possui comprovação legítima de sua posse, ainda que em imóvel irregular, encontrando empecilhos ao pedido de ligação poderá se socorrer da via judicial para comprovação dos pontos acima destacados, fazendo prevalecer seu direito ao fornecimento do serviço essencial.
Por Diego Schmitz. Advogado inscrito na OAB/SC nº 47.266. Especialista em Direito e Negócios Imobiliários pela faculdade Cesusc. Atuante no direito civil, com ênfase no mercado imobiliário.
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